O Restaurador de Livros
Sorinne, apressada, adentrou a biblioteca pensativa; não queria ter assustado sua adorável amiga Anne e até tentou retornar ao quarto dela para se desculpar, mas Anne já havia partido. Sorinne temia estar imersa em tristes desesperanças que ressoavam amargamente por cada uma de suas falas. Então, respirou fundo por causa da sensação infeliz e voltou-se ao centro do ambiente, avistou um homem. As costas dele eram largas, vestia-se elegante, parecia atento às escrituras d'algum livro já debilitado. Sorinne não se lembrava de ter avistado aquelas costas, não pareciam familiar, então aproximou-se. Bisbilhotou. Mãos viris e grandes foram distinguidas segurando uma agulha e fios de linha. No rosto do forasteiro um tipo específico de monóculo com três lentes espessas, as quais facilmente se intercalavam por meio de uma mecânica inovadora. De súbito, o homem viu Sorinne que, até então, fora profundamente furtiva; o susto tênue fez com que a agulha furasse seu dedo e Sorinne, prestativa, não conseguia parar de pedir-lhe desculpas enquanto buscava fiapos de tecido para envolver o ferimento.
— Não te preocupas, está tudo bem, veja, um sangue de nada. Há de cicatrizar antes mesmo que voltes com um curativo.
— Perdoe-me, senhor, estava eu tão curiosa para saber o que tu fazias com este exemplar e, por estares concentrado, hesitei em interrompê-lo. — Fitzwilliam sorriu.
— Como uma Dama profundamente instruída, temeste que eu o estivesse ferindo? — As palavras do Dom trouxeram um natural e límpido semblante feliz à Sorinne.
— De certa forma… O que o senhor fazia?
— Estou restaurando-o. Veja, a capa soltou-se e as primeiras páginas estão inseguras. Com esta agulha curva e mais a linha adequada, costuro e fortifico o exemplar. — Sorinne observava com atenção e fascínio. Fitzwilliam demonstrava seus movimentos delicados, ensinando-a cada um dos passos que fazia para criar os minúsculos nós.
— Ó! Tão belo… quão delicado! Um trabalho de grande valor, senhor. — Fitzwilliam deixou suas ferramentas de lado, tirou seu monóculo, limpou suas mãos com um pouco de álcool de seu pequeno frasco ao lado da pilha de livros e estendeu, em cumprimento, sua mão direita.
— Sou Fitzwilliam Learvhen — Sorinne tocou a mão de Fitzwilliam e ele beijou o dorso da mão dela.
— Muito prazer, senhor Learvhen. Eu sou Sorinne von Phennen.
— Por favor, apenas Fitzwilliam. Decerto que o prazer é meu, senhorita Sorinne, se assim posso chamar-te. — Sorinne enrubesceu.
— Claro que podes. Vais restaurar toda esta pilha?
— Aqui não. Levarei alguns para meu ateliê a pedido de Dom Vonssihren.
— Há um exemplar de um romance que tenho grande paixão, ele está tão destruído. Posso mostrar-te?
— Decerto que sim! — Sorinne caminhou lentamente até a mais distante das estantes, Fitzwilliam a seguiu. Olhando ao redor não pôde encontrar a escada para que pudesse subir às prateleiras mais altas.
— Está ali, mas, não alcanço. — Fitzwilliam esticou seu braço, sua estatura era suficiente para alcançar o objeto, mas para isso, dado o espaço em que estavam, teve de inclinar-se mais do que devia sobre o corpo de Sorinne. Os segundos que se sucederam causaram, aos dois, grande calidez; a aproximação permitiu-lhes sentir seus perfumes entrelaçados sobre a atmosfera silenciosa, além disso, o toque, a sutil pressão de Fitzwilliam sobre Sorinne de imediato ruborizou-lhes as faces. Com o exemplar em mãos, o senhor Learvhen afastou-se cauteloso.
— Aqui... está… — ele disse olhando diretamente aos olhos negros de Sorinne. Ela sentiu-se envergonhada, principalmente porque estava atraída pelo restaurador de livros, algo que há tempos não sentia. — Bem… a capa está bem desgastada… — continuou Fitzwilliam na tentativa de desviar-se da admiração constante que dedicava ao rosto da donzela. — Muitas folhas soltas e… que doloroso! Alguns rasgos entre páginas… — Fitzwilliam analisava com zelo e não deixou de perceber que se tratava de um romance clássico.
— Ganhei quando jovem, eu estava com quinze anos. Faz um tempo… — Sorinne abraçou-se num tênue gesto de carinho a si mesma — Era de minha mãe… Já li tantas vezes… contudo há tempos receio de tocá-lo, está tão sensível. Precisa de atenção. Quanto ficaria para consertá-lo, senhor Fitzwilliam? — Ele a olhou atento.
— Será um presente a uma dama tão delicada e gentil. Levarei junto com os demais e trarei assim que possível.
— Não posso aceitar, é o teu trabalho e merece todo o reconhecimento.
— Então dê-me um entardecer de outono, o que achas? Junto com uma conversa agradável nos bosques. De maneira alguma te cobrarei quaisquer quartzos por este serviço, o farei com o coração aberto e… — Fitzwilliam hesitou — Pulsante… — Seu tom de voz diminuiu, como se buscasse confidenciar algo. Sorinne tremeu ao ouvir as palavras que, embora inócuas e desprovidas de quaisquer intensões sombrias, traziam à tona a reciprocidade do desejo. Admiraram-se em silêncio e calor por átimos se segundos infinitos até que o som da grave voz de Dom Vonssihren os retirasse da aprazível aproximação. Ambos caminharam até o centro da biblioteca outra vez.
Para Sorinne as excitações tão inocentes que emergiram vívidas em sua alma muito se assemelhavam às sensações dos livros restaurados que, com esmero, eram manuseados e curados para reviverem e, com isso, oferecerem a um leitor, outra vez, o melhor que possuem em si. Ao despedirem-se, Sorinne não hesitou em reforçar sua admiração: “Todo o apuro que dedicas aos livros é algo de digníssimo valor!” — Fitzwilliam sentiu-se lisongeado e manteve seus olhos atentos aos lábios de Sorinne: “Tenho o mesmo afeto e diligência com tudo o que minhas mãos tocam, senhorita” — Revelou. Sorinne saudou-o enquanto sentia o encanto, o arrepio e a paixão que nascia ávida pela vida, assim como uma flor pelo sol, etérea e orvalhando em perpétuo contentamento.
Disparada seguiu pelos claustros do castelo Vonssihren, embora mantivesse sua elegância; a aragem era doce e tenra, beijando seu rosto com a serenidade de um…